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domingo, 25 de setembro de 2011

Choveu

Obrigado, ó mãe, pela chuva que derramas
Teu pranto de alegria sublima a letargia
Impulsiona a alma à primavera que irradia
Manifestas que és vida e todo corpo se levanta
                                                    
As plantas, o bêbado, o vizinho praguejante
A moça, o casal, o machista delirante
Do Hades se esquecem acotovelando-se às janelas
Brindando todos juntos o céu que vêm à Terra
                                               
E é Gaia prontamente quem lhe torna a coroar
Com o canto das cigarras que parecem antecipar
Em uníssona harmonia vespertina pós verão
                                               
Cores e odores das flores a brotar
Amanhã ao acordarem, com Apolo a carregar
O sol pela abóbada, do orvalho se secarão.
                                                                                                                   

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Consciência de si

É preciso morrer para poder dormir
pois sem esquecer de si
quem poderia se ir?

ao contrário, na morte, é preciso se segurar
pois se em si não acreditar
como permanecer e mudar?

é preciso morrer
para renascer
o cotidiano.


Igor L.C.

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segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Fim dos tempos

Os homens loucos
todos eles
            ocos
não esperem nada
de mim
além do fogo

não chovo
sou o trovão da guerra
da água que não deságua,
da espera que não se acaba,
da seca da fonte seca,
do tempo que não respira,
enquanto inspira
os homens loucos
a serem rotos.

Sem água a terra é nada
oca cãibra que não passa;
mas eu trovão que se escuta
sou estrondo ouvido esperança
de deixar de ser lança-chamas
e ser gota que cultive as plantas

mas eu trovão des-espero
sou prelo daquilo que quero
pré-impresso nos meus cadernos
tua sede se torna teu credo
teu medo devaneio se torna
e entorna
rios de choro na boca
oca, ávida, louca.

Enfadonha desgraça humana
largue mão desta fé cigana
que migra do que acredita
mitifica o que santifica
tacanha miséria urbana
que se ilude
mas cai da cama.

Igor L.C.

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Turista


Quarenta e um graus; quinze horas e cinquenta e cinco minutos; 41º... 15:55.

Sinto a onda solar reluzir em mim pelas calçadas de Niquiti. Destino: praia do sossego. Dois litros de água e mais uma garrafa menor para cada. Entramos no ônibus.


O calor deve exaltar os ânimos, ou assim mostrou-se um cidadão local, gritando com o negro cobrador: "vou te mostrar o que é desrespeito!!", disse ele em tom ríspido. "Que ele vá à merda", pensei eu solipsista.


Cadeiras preenchidas, pessoas começam a ficar em pé. Conto-os, já são ao menos três... Próxima parada e perco minha conta. O percurso faz parte da história, e descrevê-lo é como tirar sua foto. Mas já tem tanta gente que não sei quanto disso tudo lembrarei depois. 


O calor derrete minha cara. Pude ver, quando eles ainda eram apenas três, que ao meu redor somente eu estava assim, inadaptado. Exerci então meu direito de mostrar o corpo: tiro a blusa, e com ela seco meu suor; de testa seca,  passo no rosto o protetor solar, e faço o mesmo em cada ombro.

O percurso se prolonga, e pouco à frente um acidente. Dois ônibus bateram, ao menos não foi de frente. Se o calor exalta os ânimos,  que azar de toda essa gente. Vai andando e vão descendo, a cada curva um ponto a menos. Eu vou, o ônibus vai, e a praia vêm!
Piratininga é o nome dela.

A terra aqui é de títulos exóticos: Gragoatá, Itacoatiara, Camboinhas; ontem, anteontem,  e ante - anteontem.

Na água que se esconde, a rocha é predominante. 

A Terra
é rocha.

Igor L.C.


sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Pontos de vista

Ela estava tesa ao volante, dirigindo numa auto-estrada bem cuidada e retilínea. Saíra de casa pela madrugada, havia então pouco trânsito e luz apenas de seus faróis, o que na estrada a fez perceber em certo momento o sublime do céu estrelado. Mantinha-se curvada para frente, como uma velha, não para ver o céu mas por hábito próprio, reforçado por seu estado físico e mental enrigecido, teso. Tinha movimentos maquinais e fumava sem parar.
Rodou por aí reto mais de duas horas, e o sol enfim raiava o dia. As janelas estavam abertas, todavia o frio vento leste do alvorecer tornara-se imperceptível, ou talvez apenas indistinto, mediante o aplacar da fumaça de seus ininterruptos cigarros. Compulsiva e sistematicamente batia “as cinzas” pela janela esquerda do carro, mas segurando o cigarro com sua mão direita, operava então um ritual bizarro para executar a irresistível tarefa imposta de bater “as cinzas” daquela maneira, digamos, ao menos jocosa: passava o fumo aceso da mão direita para a esquerda, mão com a qual tesa até então segurava, braços semi-flexionados, o voltante; feita a troca, enquanto dava uns tragos e batia as cinzas com a esquerda, permanecia por segundos dirigindo com a mão direita, mão que quando dispensada de tal serviço voltava a anelar o cigarro por entre os dedos de modo a conseguir manter-se também por sobre a marcha, um desses vícios de certos motoristas. Não pensava em muita coisa, o que tornava o tempo mais lento, mas sem destino, não havia viagem, portanto nem hora para chegar.
Dedicava-se a inutilmente praguejar. Havia sido mesmo uma noite difícil a que se passara. Carregava as energias em seu corpo, mas ela não queria pensar naquilo. Tentava desfocar-se do mundo, olhos na estrada e a mente, as vezes, em casa. Por um instante, perdido pelo caminho, lembrou-se de seu gato e sorriu. O bixano era mesmo idiossincrático. Por outro instante e, esse, pensou, já não se perderia dali em diante, decidira tornar peremptório o juízo por findar logo tudo enfim! Exclamara até um “meu Deus!”, “chega!”. Estava transtornada, fumava como uma chaminé e dirigia ainda com uma postura assemelhada à de uma velha. Na estrada, cada vez mais carros e um radiante nascer do sol. Passada meia hora, o breu da madrugada já desacompanhara-a totalmente, e o sol subindo majestoso anunciava mais um dia de trabalho mundial, avanço e progresso das civilizações. O novo dia fazia seus estrondos característicos, e surgia como esperança a muitos pais de família com crianças famintas, como nova colheita a se cumprir para os industriais da agricultura, como renda novinha em folha: suor de uns e mando de outros. Para ela, o dia surgia com suas luzes e barulhos, e só; e a ruidosa cidade próxima quilômetro a quilômetro tornava-a mais delirante, até que, tirando-a totalmente do sério, quando enfim chegou ao vilarejo, resoluta encostou num buteco, nunca antes visto, a fim de em silêncio verter lágrimas prum copo qualquer e, claro, comprar mais cigarros. Como era de se esperar, não haviam conhecidos sentados às mesas, apenas possíveis clientes de talão de cheque, daqueles que fiéis ao bar da esquina fecham a conta por mês. Aquele clima de padaria abrindo mas ainda vazia deixou-a extremamente satisfeita, como fosse um solene momento aberto para a reflexão. Pensava de novo em sua casa, “que já estava longe, mas que ela ainda estava lá”. Veio à mente o gato perdido na estrada, seu quarto, a sala de tevê e as noites lá entre suas amigas, os amigos, seu quarto, as arvores e em geral toda a vegetação do terreno, mas em especial o ipê violeta que dava as boas vindas ali pertinho do portão de entrada. Seu pequeno mundo em que vivera até então, contendo todas suas referências, desmantelara-se na noite anterior. Só a imagem do gato permanecia crua, intocada pela mácula que abarcara todo o resto, tal como a fumaça de seu cigarro havia feito com o frio vento leste ao alvorecer. Acendeu mais um cigarro, para imacular seu novo mundo, seus novos passos, sua enfim saída definitiva de casa! Num brinde imaginário, celebrando sua libertação, lamentou porém de soslaio sua ciência de ser tudo aquilo fantasia, talvez nada mais que uma peça de menina, pois sabia, era demasiado burguesa para ir trabalhar e se auto-sustentar. Deu um gole amargo, mais uns dois tragos, pagou a conta, levantou-se e ao dar partida no carro, deu meia-volta. É que além do mais, ela havia esquecido de levar consigo o gato, fosse agora ou depois, uma hora teria de voltar ao lar. Peremptório mesmo, nem a mácula. 

Igor L.C.